sexta-feira, 28 de abril de 2017

O Jogral de Nossa Senhora

Havia em França, nos tempos do Rei São Luís (1214 - 1270), um pobre truão, natural de Compiègne, chamado Barnabé,  que  ia  de  terra  em  terra  fazendo exercícios de equilíbrio e habilidade.
Nos dias de feira estendia na praça pública um velho tapete muito surrado e depois de ter atraído as crianças e os curiosos com as suas momices aprendidas de um velho saltimbanco, tomava atitudes surpreendentes e sustentava um prato em equilíbrio sobre o nariz.
A multidão olhava-o a princípio com indiferença; mas quando, apoiando-se em ambas as mãos, de cabeça para baixo, lançava ao ar e amparava com os pés seis bolas de cobre, que faiscavam aos raios do sol, ou quando, unindo os calcanhares à nuca, dava ao corpo a forma perfeita de uma roda, e jogava com doze facas nessa posição difícil, elevava-se no público um murmúrio de admiração e as moedas choviam aos montes sobre o arruinado tapete.
Contudo, como a maior parte dos que vivem dos seus talentos, Barnabé de Compiègne passava medianamente.
Ganhando o pão com o suor do seu rosto, partilhava em excesso das misérias provenientes do pecado de nosso pai Adão. 
Além disso, não lhe era possível trabalhar tanto quanto queria. Assim como as árvores para produzirem frutos e flores, Barnabé necessitava do calor do sol e da luz do dia para demonstrar as suas excelentes faculdades. Durante o inverno era uma árvore sem folhas, quase seca. A terra gelada era muito dura para o infeliz saltimbanco, que  tinha fome e frio na má estação, mas suportava os seus males com paciência e ânimo alegre.
Nunca meditara sobre a origem das riquezas e da desigualdade entre as classes humanas. Acreditava cegamente que se este mundo era ruim, o outro não podia deixar de ser bom, e esta esperança o sustentava. Não imitava os de mau comportamento, malfeitores ou descrentes que vendiam a sua alma ao diabo. Nunca blasfemava do nome de Deus e vivia muito honestamente.
Era um homem de bem, temente a Deus e muito devoto da Santíssima Virgem Maria. Quando entrava numa Igreja, nunca deixava de ajoelhar-se ante a imagem da Mãe de Deus e dirigir-lhe esta oração:
"Senhora, cuidai da minha vida até à hora de minha morte; e depois de eu morrer fazei-me desfrutar as delícias do Paraíso."
Um feliz encontro
Ao escurecer de um dia chuvoso, Barnabé caminhava triste e curvado, levando debaixo do braço as suas seis bolas de cobre e a sua dúzia de facas, embrulhadas no velho tapete, em busca de um albergue onde pudesse dormir, quando esbarrou com um frade que seguia o mesmo caminho e a quem saudou cortesmente.
O frade estranhou um pouco a figura de Barnabé e perguntou:
– Amigo, por que andais vestido de verde dos pés à cabeça? Será talvez para representardes um papel em alguma peça misteriosa?
– Não, meu padre. Sou saltimbanco de profissão e chamo-me Barnabé. O meu ofício seria o mais belo do mundo se desse para comer todos os dias...
– Ora, ora Barnabé, cuidado com o que dizes! Não há estado mais feliz que o monástico! Nele celebram-se as grandezas de Deus, da Virgem Maria e dos Santos! A vida do religioso é um perpétuo cântico ao Senhor!
B Meu padre, confesso que falei como ignorante. A vossa profissão não se pode comparar à minha, e embora tenha certo valor o bailar sustentando na ponta do nariz uma moeda em equilíbrio sobre um pau, este valor fica a mais de cem metros abaixo do vosso! Bem quisera eu, como vós, meu padre, cantar diariamente os ofícios, e muito especialmente o da Santíssima Virgem, por quem sinto particular devoção. De boa vontade renunciaria à arte em que sou tão vantajosamente conhecido desde Soissons até Beauvais, em mais de seiscentas vilas e aldeias, para abraçar a vida monástica!
Ficou o monge encantado com o discurso arrazoado do saltimbanco, e como tinha muita experiência, reconheceu em Barnabé um daqueles de quem Nosso Senhor dissera: "Paz na terra aos homens de boa vontade!" E assim lhe respondeu:
B Amigo Barnabé, vinde comigo, e eu vos farei entrar no convento do qual sou prior. O Senhor Deus me colocou no vosso caminho para vos conduzir pela estrada da salvação!
E desta forma se fez monge Barnabé.
 O Monge Barnabé
No convento onde foi recebido, os religiosos celebravam à porfia o culto da Santa Virgem, e cada qual empregava em servi-la todo o talento e habilidade que Deus lhe concedera.
O prior, pela sua parte, escrevia livros que tratavam das virtudes da Mãe de Deus.
Copiava-os sobre folhas de pergaminho a mão habilíssima do irmão Maurício.
O irmão Alexandre iluminava-os com delicadas miniaturas. Nelas se via a Rainhado Céu, sentada num trono, a cujos pés velavam quatro leões, e em volta da sua cabeça esvoaçavam sete pombas representando os sete dons do Espírito Santo: a Sabedoria, o Entendimento, o Conselho, a Fortaleza, a Ciência, a Piedade e o Temor de Deus. Acompanhavam-na seis virgens de cabelos de ouro: a humildade, a prudência, o recolhimento, o respeito, a castidade e a obediência.
O irmão Marbódio era igualmente um dos ternos filhos de Maria. Talhava sem cessar esculturas de pedra, e por isso trazia a barba, as sobrancelhas e os cabelos brancos de pó. Sempre estava cheio de vigor e alegria na sua avançada idade, e visivelmente a Rainha do Paraíso protegia o envelhecer do seu bom devoto.
Marbódio representava-a numa banqueta sobre um estrado, com a fronte cercada por uma auréola.
Havia também no convento poetas que escreviam hinos em latim, em honra da Bem-aventurada Virgem Maria, e até Picardo que narrava os milagres de Nossa Senhora em língua vulgar e versos rimados.
Ao ver tal concurso de celebração e tão excelente colheita de obras, Barnabé lamentava a sua ignorância e simplicidade.
– Ai de mim! – suspirava, passeando isolado pelo jardinzinho sem sombra do convento. Que infeliz eu sou por não poder, como os meus irmãos, reverenciar dignamente a Mãe de Deus, a quem consagrei a ternura de meu coração! Ai de mim! Ai de mim! Sou um homem rude e sem arte, que não tem para pôr ao serviço da Santíssima Virgem nem sermões edificantes, nem tratados bem expostos segundo as regras, nem finas pinturas, nem estátuas perfeitamente esculpidas, nem versos contados e divididos em cadências. Pobre de mim, que não sei fazer nada disto...
Assim gemia Barnabé, entregando-se a uma profunda e perigosa tristeza!
Numa tarde em que os frades se recreavam conversando, ouviu contar a um deles a história de certo religioso que sabia apenas dizer a "Ave Maria". Este religioso era desprezado pela sua ignorância; porém, quando morreu, nasceram de sua boca cinco lírios em louvor das cinco letras do nome de Maria, e assim foi revelada a sua santidade!
Ao ouvir aquela narrativa, Barnabé admirou mais uma vez a bondade da Virgem; mas nem por isso ficou consolado, pois era grande o seu desejo de glorificar a sua Senhora que está nos céus.
Procurava um meio, sem conseguir achá-lo, e cada dia se mostrava mais mortificado, até que, tendo acordado certa manhã muito alegre, correu à capela e ali permaneceu sozinho por espaço de mais de uma hora. E pela tarde voltou lá.
Desde então, ia todos os dias à capela nas horas em que a achava deserta, passando ali boa parte do tempo que os outros monges consagravam ao exercício das artes mecânicas e liberais.
Desde então, não andava triste, nem suspirava. Tão singular proceder despertou a curiosidade dos monges. A comunidade começou a se interrogar sobre o motivo a que obedeceriam os freqüentes desaparecimentos do irmão Barnabé.
O Prior, que tinha por dever não ignorar coisa alguma que dissesse respeito ao procedimento dos seus religiosos, resolveu observar Barnabé nos seus isolamentos. E assim, certo dia em que este se tinha encerrado na capela, como de costume, o prior, acompanhado por dois frades mais velhos, foi espreitar por uma brecha da porta o que se passava lá dentro.
Viram Barnabé de cabeça para baixo, diante do altar da Santíssima Virgem, jogando com seis bolas e doze facas, ao mesmo tempo!
Fazia, em louvor da Santa Mãe de Deus, os exercícios que lhe tinham granjeado maior número de aplausos, e outros ainda que nunca havia feito até então.
Não compreendendo que aquele homem simples punha assim ao serviço da Virgem o seu talento e a sua arte, os dois frades mais velhos acusaram-no de sacrilégio e que estava tomado por um espírito mau.
Sabendo o Prior que Barnabé tinha a alma inocente, considerou-o atacado de demência.
Dispunham-se os três frades a expulsá-lo violentamente da capela, quando viram a Santíssima Virgem sorrir muito comprazida para Barnabé!
Então, o Prior, curvando a cabeça até juntar o rosto ao chão, disse estas palavras:
– Bem-aventurados os que tem o coração puro, porque deles é o Reino dos Céus!

– Amém! B responderam os anciãos osculando a terra.